sábado, 30 de julho de 2011

Eu nasci no século vinte

Eu nasci no século vinte
No regime de Salazar
O povo vivia pobre
Com a fé a nos levantar

A fé em Deus era a força
Que nos fazia sobreviver
Era tudo muito incerto
Por vezes até o que comer

O dinheiro era pouco
Trabalho só agricultura
A terra era o sustento
De famílias em penúria

Trabalhavam de sol a sol
E sem direitos nenhuns
As tantas faltas que havia
Era angústia para alguns

O regime era fascista
E a riqueza era a terra
Toda ela aproveitada
Desde o mar até a serra

A necessidade obrigava
Cavar vales e montanhas
Fazer paredes e levadas
Em ribanceiras estranhas

Eram ricos de trabalho
Mas era duro o dia a dia
O suor brotava do corpo
P’ra conseguir o que se comia

Não havia reforma nem abono
Nem direito à saúde
Nasciam muitas crianças
Só algumas chegavam à juventude

O povo vivia pobre
Faltava o necessário
E a pouca formação
Fazia da vida o calvário

A formação dos nossos pais
Era a escola da vida
E cada qual ia aprendendo
Com a pessoa mais crescida

Andavam todos descalços
E roupa sem poder escolher
Uma andava no corpo
E outra posta a escorrer

As fraldas para as crianças
Eram restos de roupa usada
Era tudo reutilizado
Sem se desperdiçar nada

Tínhamos uma cultura
Sem estar regenerada
Era a dos nossos avós
Que para nós foi passada

Eram hábitos e tradições
No meio de uma pobreza
O povo se conformava
Com a maior delicadeza

As mulheres casavam novas
Não gozavam a mocidade
Começavam era a ter filhos
Enquanto tivessem na idade

Do casamento aos cinquenta
Eram grávidas ou amamentar
Não tinham outra opção
Pois não havia planeamento familiar

Os casais tinham por norma
De dez filhos para o ar
Nasciam uns atrás dos outros
Com os mais velhos a cuidar

As mulheres sem direitos
Só lhes era apontado deveres
Não tinham vontade própria
Só os homens tinham poderes

Eles quero, mando e posso
E cheios de ventania
Só vêem na mulher
Um objecto que procria

E elas iam tendo filhos
Sem meios para os criar
Sabe Deus os pensamentos
Que elevavam ao rezar

Eram filhos sobre filhos
Todos trocados a dormir
Uns de cabeça prós pés
Para a mesma cama servir

Antes mesmo do fascismo
Tinha havido democracia
Mas a má governação
Foi um balde de água fria

De mil novecentos e dez
Até aos vinte seis
Foi a primeira Republica
De anos durou dezasseis

Dezasseis anos de democracia
Doente com gravidade
Por abusarem tanto dela
Perderam a liberdade

As greves e os desacatos
Puseram o país na banca rota
Dando lugar ao fascismo
Levando a democracia à derrota

Foi um preço exorbitante
Duma democracia falhada
Deitando o país ao fundo
Numa crise prolongada

Quem pagou essa crise
Foram os nossos pais e avós
Viveram tão apertados
Que veio a sobrar para nós

Sofremos com o fascismo
Miséria angustia e fome
Uma ditadura sem limites
Que o pobre não teve nome

Abriram-se algumas escolas
Começava a aprendizagem
Para um povo analfabeto
Estudar dava coragem

Só apenas de longe a longe
Havia um que sabia ler
Ou estudara na tropa
Ou pagou para apreender

Os alunos enchiam a sala
Mas professora era só uma
Com aulas das nove às cinco
E sem ajudante nenhuma

Na escola havia respeito
E o maior sentimento
O sinal da cruz era feito
Antes da aula e no encerramento

Todos os dias se cantava
De pé o Hino Nacional
Em posição de sentido
E espírito sentimental

Juntos de cabeça erguida
Braço estendido p’rá frente
Unidos numa só voz
Como se estivesse o presidente

P’ra se matricular na escola
Havia um limite de idade
Aquele que o ultrapassasse
Perdia a oportunidade

Eram pessoas ainda novas
Que ficaram excluídos
Continuando analfabetos
E para sempre constrangidos

Marcavam o dedo na tinta
Por não saberem assinar
Nem p’ra encontrar um papel
Que andassem a procurar

O meio rural tinha crianças
Que sobrelotava a escola
Iam todos descalços
Com cevadeira ou sacola

Os materiais exigidos
Era o lápis, ardósia e o tinteiro
A pena, livro e o caderno
Para usar o ano inteiro

Os alunos e a professora
É que arrumavam a sala
Eram sempre uns escolhidos
Para a tarefa depois da aula

Na cidade já sabiam ler
O pior era no meio rural
O povo se expressava
Em vez de em escrita, em oral

Nem a própria assinatura
Se sabiam escrever
Marcavam o dedo na tinta
E assinavam mesmo sem ler

E assim iam vivendo
Numa pobreza estrema
Sentiam-se aprisionados
Por viverem naquele esquema

Muitos tiveram de emigrar
Em busca de melhor sorte
Enfrentado obstáculos
De prisões, tortura e morte

Havia a PID e os informantes
Que barravam as fronteiras
Antes de chegarem ao destino
Estavam eles com rasteiras

Metiam-nos na prisão
Enjaulados como animais
Humilhados e desprezados
Torturas que eram demais

Tratados como criminosos
Por quererem ganhar o pão
Gastos de uma terra madrasta
Procuravam quem lhe desse a mão

Sem grandes conhecimentos
Analfabetos agricultores
Sujeitavam-se a emigrar
P’rá dar à família valores

Eram famílias desesperadas
Sem nenhuma solução
As terras eram dos ricos
E os pobres não tinham pão

Tudo era controlado
Pelo regime dos senhores
O povo de fracos recursos
Submetiam-se aos rigores

Tinham poucos conhecimentos
E não sabiam língua estrangeira
Mas iam-se aventurando
Na travessia da fronteira

O não ter que dar aos filhos
Para os pais era amargura
Era uma revolta constante
De uma vida pobre e dura

Partiam sem despedidas
Iam no segredo dos deuses
Quando davam notícia
Já tinham passado meses

Nem tão pouco se sabia
As noticias do país
Só passado muito tempo
Chegavam num diz que diz

Não havia televisão
E telefonias muito poucas
As notícias iam-se espalhando
Andando de boca em bocas

Começou a guerra em África
Com terrorismo a avançar
Por querem a independência
Começaram-se a matar

Eram colónias portuguesas
Portugal teve de intervir
Enviando p’ra lá as tropas
Para a África não explodir

E o terrorismo se alastrava
Por todo o Ultramar
Umas colónias atrás das outras
Como praga a se infestar

Com aqueles acontecimentos
O Governo abriu uma excepção
Deixando a porta aberta
E propondo a emigração

Para Angola e Moçambique
Iam sem carta de chamada
Até pagavam a passagem
A alguma família necessitada

As colónias estavam atrasadas
E com pouco desenvolvimento
Eram precisos trabalhadores
Que tivessem conhecimento

E para lá foi muita gente
Correndo atrás da ilusão
Pois o Governo português
Queria marcar posição

Todos foram trabalhar
A desbravar matagais
Prepararam os terrenos
E o cultivo era demais

E aí foi o desenvolvimento
Havia vontade de trabalhar
O produto era a riqueza
Para o seu amealhar.

Só que os lucros amealhados
Era obrigatório investir lá
Sem deixar um pé-de-meia
Guardado no lado de cá

A transferência bancária
Não era autorizada
Era tudo controlado
P’ra de lá não sair nada

E assim foram trabalhando
Fazendo lá o seu mundo
Deixando os anos passar
Naquele sonho profundo

Aí começou os terroristas
Escondidos na fronteira
Esperando a noite chegar
Para fazer rabalheira

Roubavam o que encontravam
Até raptavam os trabalhadores
Deixando todos em pânico
Com medo daqueles horrores

E o Governo viu-se obrigado
A fazer aquartelamentos
Destacando tropa e polícia
P’ra muitos aldeamentos

E assim os soldados Portugueses
Iam obrigados para o Ultramar
E aí servindo de escudo
Ou morriam ou tinha de matar

Rapazes de vinte anos
Com sentimentos e moral
Viviam numa amargura
Duma sentença mortal

A guerra do Ultramar
Levava jovens à loucura
Cumprir o serviço militar
Para eles era tortura

O medo do Ultramar
Deixava-os em desespero
Aquele conflito em África
Para eles era exagero

Portugal tinha inimigos
Com duas caras numa só
Faziam-se de amigos
Mas espicaçavam sem dó

Alimentavam o terrorismo
Com armamento e estadia
Incentivavam à guerra
Enquanto o povo sofria

Chegou a uma década
Esse flagelo de guerra
Fazendo sofrer os que iam
E os que ficavam cá na terra

Foram quarenta e oito anos
Que o fascismo durou
Veio o vinte cinco de Abril
Com a ditadura acabou

Foram as Forças Armadas
A comandar a revolução
Ocuparam pontos estratégicos
Deitando o Governo ao Chão

O professor Marcelo Caetano
E o Almirante Américo Tomás
Sem resistência se entregaram
Por também quererem a paz

O professor Marcelo Caetano
O primeiro-ministro da ocasião
Mandou chamar o general Spínola
Para entregar o governo em mão

Marcelo Caetano estava seguro
Mesmo debaixo de pressão
Mas deixar o governo na rua
Estava fora de questão

E assim ficou o General Spínola
Com o Governo na mão
Formando uma junta militar
Para acabar a revolução

E assim os governantes
Foram retirados à pressa
Deportados para o Brasil
Sem despedida nem promessa

Ficou a revolução dos cravos
Pelo gesto da florista
Ela os, ofereceu aos soldados
Grata pela conquista

Os soldados traziam os cravos
Enfiados nas suas armas
E o povo ia aplaudindo
Com grande salva de palmas

Voltava a democracia
Mas com um povo revoltado
A exigir os seus direitos
E querendo vingar o passado

O povo sentia revolta
Das tantas misérias passadas
E por saberem do ouro
Guardado às toneladas

Esse ouro era reserva
Acumulado por Salazar
Tinha sido moeda de troca
De compromissos a salvar

Veio a servir de penhor
P’ra alimentar a democracia
Pois foi tudo tão de repente
Que o povo se confundia

Era o povo a reclamar
A exigir mais e mais
O atraso pelo fascismo
Recuou-nos décadas atrás

Foram criando partidos
Sem a menor hesitação
Todos queriam governar
Prometendo evolução

Foi uma era de mudança
Trocando o pé pela mão
Fazendo da liberdade
Um meio de tentação

Regressaram os exilados
Acusados de crimes políticos
Avançaram com partidos
Fazendo esquecer os seus delitos

Deram independência
As colónias Ultramarinas
Nacionalizaram os bens
E ocuparam campinas

Com essas mudanças todas
Regressavam os retornados
Apenas com as suas roupinhas
E os corações destroçados

Foi uma enchente de gente
A chegar a Portugal
Todos sem eira nem beira
E sem alento emocional

Todos se lamentavam
Sem encontrarem soluções
Uns com filhos ainda pequenos
E outros velhos sem condições

Todos de novo à miséria
A olhar as mãos de alguém
Sem casa nem que comer
E pedir ajuda a quem

Falo por experiência própria
Também vivi esse pesadelo
Sendo eu uma retornada
Sentia-me num desmazelo

Tive ajuda dos meus pais
De comer não me faltou
Mas aquela situação
Confesso que me assustou

Era uma nova era
Mas o povo desprevenido
Com aquela democracia
Estava tudo destorcido

Era o comunismo a se instalar
Deixando-nos de pé atrás
Pois as promessas que faziam
Davam o mundo e muito mais

Prometiam o que não tinham
E sem terem onde buscar
Portugal não tinha minas
Que pudessem explorar

Apenas havia um povo
Humilde mas lutador
De mangas arregaçadas
A trabalhar com fervor

Portugal com a democracia
Abriu portas para mundo
Pois o regime fascista
Tinha o deixado no fundo

Portugal pobre e pequeno
Pedia asas para voar
Queria ir mais além
Sem se deixar afundar

Foram-se descobrindo meios
E propostas tentadoras
Portugal foi-se envolvendo
Nas dividas e em penhoras

Em mil novecentos e oitenta e seis
Portugal aderiu a União Europeia
Doze anos de democracia
Apenas com regime na ideia

Sentiam-se em liberdade
Para poderem votar
Mas não era bem aquilo
Que o povo esperava encontrar

Precisavam de meios
E de muita formação
Postos de trabalho
P’ra valorizar a nação

Foi aí que o país deu a volta
Ajudado pelo exterior
A confiança depositada
Veio trazer mais valor

Foi um reforço p’ra Portugal
Que melhorou condições
Abriram-se empreendimentos
E aumentaram-se instituições

O dinheiro da União Europeia
Ajudou Portugal a crescer
Foi um salto p’rá evolução
Que o povo sonhava ter

Abriram-se postos de trabalho
E aumentaram as construções
Modernizaram as escolas
Dando a todos condições

Os jovens ricos ou pobres
Tiveram direitos iguais
Podendo concluir os estudos
E seguir os seus ideais

Os que não quiseram estudar
Optaram pela emigração
À procura de trabalho
Que assegurasse a profissão

O dinheiro dos outros países
Era a maior tentação
Cambiado para Portugal
Enchia o olho e a mão

Poupavam p’ra fazer casa
E comprar o seu carrinho
P’rás férias do verão
E p’ra guardar um bocadinho

A diferença em Portugal
Era o dinheiro que não paria
A moeda estava em baixa
E o produto é que subia

Os jovens a estudar
Tiraram mais formação
Mas pesava sempre o contra
De não terem remuneração

Acabavam os estudos
Já com uma certa idade
Daí a encontrar trabalho
Lá se ia a mocidade

Uns eram engenheiros
E outros advogados
Muitos professores
E outros já doutorados

Foi uma era de evolução
Na alta tecnologia
Portugal se modernizou
Como da noite p’ró dia

O homem a ver o progresso
Não se deu por satisfeito
Cada vez puxava mais
O cordel a seu proveito

E foram alimentando ideias
Venderam o ouro e tudo mais
Faziam promessas sem controle
Sem olhar o que vinha atrás

Os partidos para ganhar eleições
Não olhavam a medidas
Uns prometiam, outros exigiam
Mas sempre a acumular dividas

Passados vinte e sete anos
O escudo também mudou
Por já estar tão fraquinho
Pela moeda única se trocou

Foi trocado pelo Euro
Pois não dava confiança
Para moeda de troca
Já estava sem fiança

E aí ficou o euro
A moeda oficial
E o escudo ficou apenas
Na bandeira de Portugal

Houve um desenvolvimento
Abrindo túneis e estradas
Dando trabalho a muita gente
Deixando as pessoas folgadas

Até veio os imigrantes
De tantos países do mundo
Todos já contratados
A construção era o fundo

Viviam numa azáfama
Eram prédios e estradas
Sempre com inaugurações
De construção acabadas

Foi um intervalo de sucesso
Todos arranjavam trabalho
Que proporcionou ao povo
Uma vida de regalo

Foi tempo de ambição
Em que levantou a moral
O povo se esquecia
Do quanto passara mal

Mas depois veio-nos a conta
Para começarmos a pagar
A palavra de ordem agora
É poupar, poupar e poupar

Pois agora começou a crise
Os trabalhos escassearam
E outros perderam o emprego
Pois as firmas já fecharam

Agora que todos estudaram
Faltam as oportunidades
O não conseguirem trabalho
Começam as dificuldades

Já há jovens com cursos
A viver à sombra dos pais
O incómodo que eles sentem
É uma tortura demais

É difícil conseguir trabalho
A crise está a afectar
Por vezes até os diplomas
Começam a atrapalhar

Quando vão fazer o currículo
Já não sabem o que declarar
Podem ter certificados
Mas só a experiência vai contar

E assim andam muitos jovens
Acabados de se formar
Por não terem experiência
Sem lugar para se colocar

Trinta e sete anos depois
A crise a se instalar
Com dividas e desemprego
Portugal a se arrastar

Deu um grito de socorro
P’ra não se deixar morrer
Esperando do estrangeiro
Uma gota para beber

Veio o F.M.I
Trazendo o copo na mão
Mas em contra proposta
De nos cortar no pão

A divida de Portugal
Subiu em velocidade
Deixando o governo sem voz
E tirando dignidade

Estamos em dois mil e onze
Com uma divida acumulada
Cabendo a cada português
17 mil euros, sem exagero de nada

São juros sobre juros
De capital hipotecado
A evolução destes anos
Em dividas acumulado

Agora p’rós madeirenses
A divida se alterou
Vinte quatro mil por pessoa
Culpa de quem governou

Cada criança que nasce
Começa já carregada
Pois o que tem para pagar
Vai a deixar desconcertada

Já cá passei por seis décadas
Atravessando marés
Com as ondas da minha vida
Na terra assentei os pés

Eu apreendi com a vida
A contar e a dividir
De um cêntimo fazia dois
Para tudo conseguir

Se os nossos governantes
Aprendessem a tabuada
Teriam o país liberto
Desta divida desgraçada

Mesmo num país assim
Ainda à muita disputa
Enxovalham-se uns aos outros
Pela fama vão à luta.

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